
Quando o Pragmatismo Encontra a Utopia
A China é frequentemente reduzida a estereótipos no debate político ocidental: “capitalismo de Estado”, “autoritarismo tecnocrático” ou “potência em ascensão”. Para socialistas, comunistas e trabalhistas, porém, há lições profundas — e muitas vezes ignoradas — em seu modelo. Longe de ser uma mera caricatura, a experiência chinesa revela como um projeto socialista pode adaptar-se a realidades complexas, combater desigualdades históricas e manter relevância global.
1. Combate à Pobreza: Um Marco Civilizatório
Entre 1978 e 2020, a China retirou 800 milhões de pessoas da pobreza extrema, um feito sem paralelo na história. O segredo não foi apenas o crescimento econômico, mas políticas públicas direcionadas:
- Projetos de infraestrutura em regiões remotas, como estradas, eletrificação e acesso à água potável;
- Subsídios condicionais a famílias pobres, vinculados à matrícula escolar de crianças e exames de saúde;
- Cooperativas rurais que integraram pequenos agricultores a cadeias de mercado sem privatizar terras.
Para movimentos trabalhistas, a lição é clara: a luta contra a pobreza exige planejamento de longo prazo e intervenção estatal ativa, não apenas redistribuição de renda.
2. Mercado e Socialismo: Uma Síntese Controversa
A China desafiou dogmas ao adotar uma economia mista, mantendo setores estratégicos sob controle estatal (energia, telecomunicações) enquanto liberava outros à iniciativa privada. Isso gerou contradições, mas também resultados:
- Inovação tecnológica: Empresas como Huawei e BYD surgiram de investimentos públicos em pesquisa;
- Regulação anticíclica: O Estado evita crises financeiras ao limitar especulação imobiliária e fluxos de capital voláteis;
- Prioridade a empregos industriais: A manufatura ainda responde por 28% do PIB, contrastando com a desindustrialização precoce no Ocidente.
Para comunistas, esse modelo questiona a ideia de que mercados são incompatíveis com o socialismo. A pergunta que fica é: como domar o capital sem aniquilá-lo?
3. Democracia Socialista: Participação Além do Voto
A China rejeita o modelo liberal de democracia, mas promove mecanismos de participação popular pouco conhecidos:
- Consultas comunitárias em vilarejos, onde moradores avaliam projetos locais;
- Avaliação meritocrática de funcionários públicos, com promoções vinculadas a metas de redução de desigualdade;
- Pressão interna no Partido Comunista Chinês (PCC): Fracassos em políticas sociais geram críticas abertas em congressos partidários.
Não se trata de um sistema perfeito — a centralização do poder no PCC é inegável —, mas a lição é que democracia pode ter formas diversas, desde que garantam voz às demandas materiais da população.
4. Soberania e Globalização: Um Caminho Próprio
Enquanto a URSS entrou em colapso ao confrontar o Ocidente, a China adotou uma estratégia de “globalização assimétrica”:
- Aderiu à OMC em 2001, mas protegeu setores sensíveis (como agricultura);
- Usou investimentos estrangeiros para construir infraestrutura, sem abrir mão do controle cambial;
- Criou instituições paralelas (como o Banco Asiático de Investimento) para reduzir dependência do FMI.
Para países do Sul Global, esse caminho mostra que é possível negociar com o capitalismo global sem se render a ele — uma lição valiosa para governos trabalhistas em nações periféricas.
5. O Futuro como Projeto Coletivo
A China não é um modelo a ser copiado, mas um laboratório de possibilidades. Suas lições mais relevantes são:
- Pragmatismo sem abandono de princípios: Reformas econômicas não eliminaram a meta de “prosperidade comum”;
- Combate à desigualdade como prioridade geopolítica: Uma sociedade menos desigual é vista como antídoto à instabilidade;
- Innovação institucional: Experimentar novos formatos de gestão, sem fetichizar modelos do passado.
Para a esquerda global, ignorar a China é abrir mão de entender como o socialismo pode reinventar-se no século XXI. O desafio é aprender com seus acertos — e erros — sem romantização ou preconceito.
Conclusão:
A China não cabe em rótulos simplistas. Seu socialismo é contraditório, autoritário em aspectos, mas também dinâmico e capaz de responder a desafios concretos. Para movimentos progressistas, a lição maior é que a transformação social exige flexibilidade tática, sem perder de vista quem se pretende representar: os trabalhadores.