Síntese Crítica, Diálogo Revolucionário
O Comunismo Democrático não é uma negação das experiências históricas da esquerda, mas uma síntese em construção. Reconhecemos que cada projeto revolucionário carrega acertos, erros e lições indispensáveis. Não nos colocamos como juízes do passado, mas como herdeiros críticos que buscam aprender com todas as tradições libertárias, trabalhistas e anticapitalistas.
A Linhagem Revolucionária: De Marx a Rojava
A história do Comunismo Democrático é uma tapeçaria feita de fios que vêm da Comuna de Paris (1871), dos sovietes de 1917, das reformas agrárias maoístas na China dos anos 1950, das guerrilhas anticoloniais africanas e das ocupações de fábricas na Argentina pós-2001. Cada experiência, mesmo as mais controversas, é um capítulo vital. A URSS, por exemplo, industrializou um país agrário em décadas, elevou a expectativa de vida de 32 para 68 anos entre 1920 e 1970 e garantiu educação universal. Por outro lado, burocratizou-se, perseguiu dissidentes e sufocou a autonomia dos trabalhadores.
O Comunismo Democrático não rejeita esse legado, mas o reinterpreta. Como escreveu Rosa Luxemburgo: “A liberdade só é verdadeira se for a liberdade de quem pensa diferente”. Lenin, em O Estado e a Revolução, sonhava com uma democracia direta onde “todo cozinheiro pudesse governar”, mas a Guerra Civil Russa e o cerco imperialista forçaram recuos. A lição? O contexto molda a revolução, e dogmatizar táticas é um erro. Hoje, Rojava atualiza esse debate: em meio à guerra na Síria, 4.600 assembleias locais (comitês) e 200 cooperativas agrícolas mostram que autogestão é possível mesmo sob bombas.
Unidade na Ação, Diversidade na Estratégia
A união das esquerdas não é utopia — é necessidade histórica. Nos anos 1930, na Espanha, anarquistas da CNT e comunistas do POUM lutaram juntos contra Franco, mesmo divergindo sobre o papel do Estado. Na década de 1960, o Vietnã unificou camponeses, intelectuais e soldados para expulsar os EUA, combinando guerra popular e diplomacia. Na América Latina, a Frente Ampla do Uruguai (fundada em 1971) reuniu comunistas, socialistas e cristãos progressistas para resistir à ditadura.
O Comunismo Democrático entende que táticas divergentes não invalidam o objetivo comum. Enquanto os zapatistas no México constroem autonomia em 32 municípios autônomos (desde 1994), o PT no Brasil usou o Estado para ampliar programas como o Bolsa Família (que tirou 28 milhões da pobreza). Ambos são respostas distintas à mesma pergunta: como emancipar os oprimidos? A resposta depende do chão onde se pisa.
O Partido como Ferramenta
O partido leninista, no Comunismo Democrático, é herdeiro de uma tradição que já moveu montanhas. Em Kerala, na Índia, o Partido Comunista (Marxista) governou por décadas combinando planejamento estatal com orçamento participativo — 40% dos recursos locais são decididos em assembleias de bairro. Na década de 1980, na Nicarágua sandinista, o FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional) misturou marxismo e teologia da libertação, alfabetizando meio milhão de camponeses enquanto resistia à Contra apoiada pelos EUA.
O modelo proposto aqui é o de um partido enraizado nas ruas, não nos gabinetes. Como os sovietes de 1917, que nasceram em fábricas e quartéis antes de se tornarem estruturas de poder. Ou como o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que, após décadas de luta armada, repensou-se sob influência de Abdullah Öcalan e abraçou o confederalismo democrático, priorizando assembleias locais sobre hierarquias rígidas. A ideia é clara: o partido deve ser um catalisador da energia popular, não seu substituto.
América Latina: O Caderno de Anotações da História
A Venezuela é um poema épico escrito a sangue e petróleo. Em 1998, Hugo Chávez chegou ao poder prometendo enterrar o “Pacto de Punto Fijo”, que mantinha o país refém de elites. Nacionalizou a PDVSA, a gigante estatal de petróleo, e usou seus lucros para financiar as missões bolivarianas:
- Misión Robinson alfabetizou 1,5 milhões de adultos;
- Misión Barrio Adentro levou médicos cubanos a favelas, reduzindo a mortalidade infantil em 49%;
- Consejos Comunales criaram 48.000 assembleias locais onde vizinhos decidem desde reparos em escolas até projetos de infraestrutura.
Apesar de sanções, inflação e sabotagem econômica, a Revolução Bolivariana sobrevive. Em 2022, 70% dos programas sociais ainda funcionavam, e a Venezuela mantém a menor desigualdade de renda da América Latina (índice Gini de 39, segundo a CEPAL). Não é um paraíso — a crise é real —, mas é um laboratório de como um Estado pode resistir ao imperialismo enquanto tenta construir poder popular.
E a Venezuela não está só. Nos anos 1970, o Chile de Allende nacionalizou o cobre e distribuiu leite para crianças, enquanto o Brasil de João Goulart aprovava reformas agrárias antes do golpe. Hoje, o México zapatista mostra que autonomia indígena e comunismo podem coexistir: em Chiapas, 32 municípios autônomos geridos por conselhos mistos (homens e mulheres) provam que a revolução não precisa de permissão do Estado para florescer.
Rojava e a Reinvenção da Utopia
No norte da Síria, onde o deserto encontra as montanhas do Curdistão, uma revolução silenciosa desafia até a gravidade da história. Em 2012, quando a Guerra Civil síria esfacelou o Estado, os curdos de Rojava não ergueram um novo governo — construíram uma rede de comunas. Aqui, o confederalismo democrático não é teoria: é mulheres armadas com fuzis AK-47 e livros de filosofia, é assembleias noturnas debaixo de árvores de oliva, é uma constituição que declara: “Nenhuma lei pode violar a liberdade das mulheres”.
As Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ), milícia feminina, não só combateram o ISIS como criaram tribunais para julgar maridos violentos. Nas cooperativas agrícolas, trigo e algodão são colhidos coletivamente, e o lucro financia escolas onde crianças aprendem curdo, árabe e a história dos mártires da resistência. Enquanto isso, em Qamishlo, a “capital” de Rojava, conselhos formados por curdos, árabes, assírios e armênios decidem sobre água, energia e educação, sob o princípio de que cada etnia tem direito a veto.
Não é uma utopia imaculada. A Turquia bombardeia, o embargo asfixia, e a pobreza persiste. Mas Rojava já reduziu o analfabetismo de 70% para 20% em uma década e aboliu a poligamia — algo que nem a Síria laica de antes da guerra ousou fazer. Como disse Hevrin Khalaf, líder assassinada pelo ISIS em 2019: “Nossa revolução não é sobre poder, mas sobre cura”.
Nenhum Comunismo é uma Ilha
O Comunismo Democrático dialoga até com inimigos. Na Noruega, o Partido Socialista (marxista) apoia o welfare state, mas pressiona por taxação de grandes fortunas. No Kerala (Índia), comunistas governam há décadas combinando planejamento estatal e democracia participativa (orçamento 40% decidido por assembleias). Até a social-democracia escandinava, que reduziu desigualdades via impostos (50% do PIB na Dinamarca), é estudada — mas criticada por sua dependência do capitalismo global.
A ideia é sintetizar, não copiar. Como Che Guevara disse: “Sejamos realistas: façamos o impossível”
A Revolução como Herança Coletiva
O Comunismo Democrático não começa do zero. Aprende com a Comuna de Paris, que em 72 dias instituiu salário igual para professores e deputados. Inspira-se na China de 1949, que acabou com o feudalismo, mas também nos erros do Grande Salto para Frente (35 milhões de mortos). Celebra Cuba, que tem a menor taxa de mortalidade infantil das Américas (4 por 1.000), mas reflete sobre seu autoritarismo.
Sua força está em não ter medo de paradoxos. Como Mariátegui, que misturou marxismo e cosmovisão indígena. Como Brizola, que armou camponeses no Brasil, mas respeitou eleições. Como Allende, que nacionalizou o cobre chileno enquanto lia poemas de Neruda.
Esta é a revolução que não se envergonha de seus mortos, mas não os mumifica. Que sabe que, como escreveu Eduardo Galeano, “a utopia está lá no horizonte: eu dou dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.
O Comunismo Democrático é esse caminho — sem mapas prontos, mas com a bússola da história nas mãos.
Perguntas Frequentes
1. O que é o Comunismo Democrático?
É uma corrente política que busca sintetizar os princípios comunistas com práticas democráticas radicais, aprendendo com todas as tradições revolucionárias (marxistas, anarquistas, sindicalistas) sem cair em dogmatismos. Seu objetivo é construir uma sociedade sem exploração, onde o poder emane das bases populares, combinando autogestão, pluralismo ideológico e justiça social.
2. Como se diferencia de outras vertentes comunistas?
- Rejeita o sectarismo: Não condena experiências históricas (URSS, China, Cuba), mas as analisa criticamente, valorizando conquistas (industrialização, redução da pobreza) e apontando erros (burocracia, autoritarismo).
- Democracia radical: Prioriza assembleias locais, conselhos populares e participação direta, indo além da democracia representativa.
- União de correntes: Alia marxistas, anarquistas, socialistas democráticos e movimentos anti-imperialistas em um projeto comum, sem apagar divergências.
3. Quais são suas principais inspirações teóricas?
- Marx e Lênin, mas reinterpretados: Marx como analista do capitalismo, não como “profeta”; Lênin pelo centralismo democrático, não pelo autoritarismo.
- Antonio Gramsci: Pela luta cultural e a construção de hegemonia popular.
- José Carlos Mariátegui: Pela integração do marxismo com as realidades indígenas e latino-americanas.
- Confederalismo Democrático de Rojava: Modelo de autogestão comunal com igualdade de gênero e ecologia social.
4. Como funciona a relação entre Partido e Estado?
- Partido como ferramenta: Organiza-se pelo centralismo democrático (debate interno livre, ação unificada), mas não monopoliza o poder.
- Estado democrático-popular: Espaço aberto a múltiplos partidos de esquerda e movimentos sociais, com instituições controladas pelas bases (ex.: conselhos comunais na Venezuela).
- Separação clara: O partido mobiliza e educa; o Estado é democratizado para evitar burocratização.
5. Quais exemplos atuais se aproximam do Comunismo Democrático?
- Revolução Bolivariana (Venezuela): Combinou nacionalismo, programas sociais (Missões Bolivarianas) e poder popular via 48.000 conselhos comunais.
- Rojava (Curdistão Sírio): Autogestão comunal, liderança feminina (40% das estruturas políticas) e economia cooperativista, mesmo sob guerra.
- Governos progressistas latino-americanos: Experiências como as de Evo Morales (Bolívia) e Lula (Brasil), que mesclaram reformas sociais com diálogo com movimentos populares.
6. Como o Comunismo Democrático enxerga a democracia liberal?
- Crítica: A democracia liberal é vista como um sistema controlado por elites econômicas.
- Radicalização: Propõe ir além do voto a cada 4 anos, com mecanismos como:
- Orçamento participativo (ex.: Kerala, Índia).
- Controle popular de recursos (ex.: petróleo venezuelano gerido para financiar educação e saúde).
- Justiça comunitária (ex.: tribunais de mediação em Rojava).
7. Qual o papel da América Latina nesse projeto?
A região é vista como um laboratório revolucionário:
- História anti-colonial: De Simón Bolívar a Che Guevara.
- Experiências recentes:
- Venezuela: ALBA, trocas solidárias e resistência a sanções.
- Zapatismo (México): Autonomia indígena sem busca pelo poder estatal.
- MST (Brasil): Ocupações de terra e pedagogia da emancipação.
- Síntese cultural: Integra marxismo, teologia da libertação e cosmovisões indígenas.
8. Como respondem às críticas sobre o “fracasso do comunismo”?
- Contextualização: A URSS industrializou um país agrário e derrotou o nazismo; a China tirou 800 milhões da pobreza.
- Autocrítica: Reconhecem erros (burocracia, repressão), mas insistem que cada experiência traz lições.
- Reinvenção: Apontam novos caminhos, como Rojava (democracia direta) e as Missões Bolivarianas (Estado social sem abrir mão do poder popular).
9. Como lidam com o imperialismo e o capitalismo global?
- Integração regional: Alianças como a ALBA e o Banco do Sul para reduzir dependência do dólar e do FMI.
- Resistência econômica: Venezuela usando criptomoedas para vender petróleo; Cuba priorizando biotecnologia apesar do embargo.
- Solidariedade ativa: Troca de recursos (médicos cubanos por petróleo venezuelano) e apoio a movimentos anti-golpe (ex.: Bolívia em 2019).
10. O Comunismo Democrático é utópico?
Não mais que o capitalismo em seu início. Seus defensores argumentam:
Frase de Chávez: “O impossível é apenas o possível que ainda não fizemos”.
Crises atuais: Aquecimento global, desigualdade e guerras mostram a insustentabilidade do sistema vigente.
Experiências concretas: Rojava, conselhos comunais e cooperativas provam que alternativas são viáveis.